segunda-feira, 10 de maio de 2010

Natal em tempo de GUERRA


À memória do nosso Camarada,

VENÂNCIO MARINHO CRUZ,

morto em combate em ANGOLA, em 1968,e condecorado, a Título Póstumo,

com a Medalha de Valor Militar de Prata, com Palma.

A dança ia começar! Ia ter início a operação a fazer até ao fim do ano de 1966.

Mentalmente, o capitão da Companhia Charlie do Batalhão de Cavalaria, recordou os efectivos de que dispunha. Talvez três grupos de combate[1]. O que importava agora, era saber qual o objectivo inimigo que iriam atacar.

Calmamente, apagou o cigarro no improvisado cinzeiro feito de uma das latas das rações de combate, pregado na madeira do pré-fabricado, "ÁREA RESERVADA ".

O capitão das operações estava sentado à mesa de trabalho.

– Então vamos ter festa?

– Vamos fazer uma operação de Batalhão.

– Muito bem. Conte coisas.

– Vamos atacar um quartel inimigo. Situa-se na margem direita do Dange, para os lados da Fazenda Maria Fernanda. É um quartel do MPLA. Vamos ali à carta de situação para eu lhe mostrar o objectivo.

Atravessaram a sala até à parede tapada por uma cortina. O sargento auxiliar das operações afastou-a.

No plástico estavam assinaladas, com muitos círculos e triângulos vermelhos, as referencias dos quartéis e agrupamentos inimigos, já que ali não havia populações.

– Como você pode ver, aqui, no fundo deste rio, junto da foz com o Dange, tem o MPLA um quartel. Julga-se poderem lá estar cerca de trezentos “turras”, bem armados. Há notícias da presença de eventuais instrutores cubanos. Têm atacado em emboscadas, na estrada do Piri e na picada que vai da Maria Fernanda à Missão.

– É aquele quartel referido no último "perintrep[2]"? Diziam ser a maior concentração inimiga no Norte de Angola.

– É esse exactamente. Julgo contudo que, se o atacarmos de surpresa, iremos ter grande sucesso. Basta um pouco de sorte. Vamos empenhar na operação as três Companhias operacionais do Batalhão. Você, por ter a tropa mais descansada, fará o golpe de mão ao objectivo. A Alfa desce desde a picada da Missão, por este rio abaixo – apontava na carta – para dar tempo a que a sua tropa se aproxime do objectivo. Ao nascer do sol, no dia D, a aviação desencadeia um bombardeamento, competindo à Companhia Alfa impedir a retirada dos elementos inimigos que eventualmente pretendam vir a escapar-se pelo rio Dange. A Bravo constituirá de reserva do comando. O posto de comando será montado na fazenda Margarido, onde, como sabe, há a pista de aviação. Eu e o Comandante, iremos para lá durante a operação.

– Mas a distância da picada entre a Maria Fernanda e a Missão ao tal quartel inimigo é muito grande. Deve ser mais de um dia de caminho.

– Não há problema, pois a PIDE tem um prisioneiro que conhece bem a região. Você vai levá-lo como guia.

– Segundo li no "perintrep", todos os trilhos de acesso ao quartel estão armadilhados. Eles têm vigias sobre a picada e os trilhos.

– Parece que assim é. Você e a sua tropa vão ser lançados de noite. Quando o sol nascer já estarão infiltrados na mata e muito longe da picada. Resumindo: irão daqui para a Maria Fernanda em coluna auto. A Companhia Bravo incorpora-se na mesma até à Fazenda Margarido. Para garantir a eficiência das comunicações e guarnecer o posto intermédio de transmissões, um dos seus grupos de combate ficará na Missão. Sob o seu comando, os outros dois grupos de combate fazem o golpe de mão.

– Mas para aquele objectivo decisivo, não acha pouco só dois grupos de combate? Nós vamos atacar! Não vamos defender!

– Você sabe tanto quanto eu: quantos mais forem, maiores são as possibilidades de não ter sucesso no golpe de mão. O factor da surpresa aqui, é determinante. – Acendeu um cigarro e continuou: – No dia D menos um, de madrugada, cerca das quatro da manhã e já sem lua, a coluna auto parte da Maria Fernanda para a Missão. Vocês saltam das viaturas em marcha, de modo a não denunciarem o local do lançamento. Internam-se imediatamente na mata e, uma vez reagrupados, iniciam a marcha. Até aqui tem alguma dúvida?

– Não. Pode continuar.

– Como lhe disse, a Companhia Alfa também irá consigo até à Missão. Quando o sol nascer, inicia a progressão apeada nesta direcção – marcou, com o lápis dermatográfico, uma seta azul no transparente – enquanto o tal grupo de combate toma conta das viaturas, guarnece a posição e vai preparar e melhorar a posição defensiva para as transmissões. É possível que os “turras” venham a chatear com pequenas flagelações. Até será bom para si. Servirá de manobra de diversão. Há imensas probabilidades de não serem detectados.

– Não sou tão optimista. Depois se verá, como diria o cego...

– Como está realmente a sua Companhia no que diz respeito a efectivos?

– A malta está muito apalpada ainda da operação Quissonde... de qualquer forma, poderei arranjar dois grupos de combate, reduzidos, claros!

– Somente dois grupos? O que é feito do resto do pessoal da Companhia?

– Há gente no Hospital em Luanda e ainda não foram feitos os recompletamentos[3] desde que saímos de Lisboa. Mas para este tipo de acções nem todos servem. Há que fazer selecção e uma selecção, entre tão poucos, não garante lá muita qualidade, não acha?

– Os que não sirvam para ir ao golpe de mão podem ficar no grupo de combate que guarnece a Missão.

– Não é aí que está o problema, mas sim, na escolha daqueles que têm de ir comigo. Também não vou mandar para a Missão só pessoal que não possa resistir, pois tenho a certeza, diria que absoluta, de que irá haver “molho” de verdade. Não me passa pela cabeça pôr no posto intermédio de transmissões, fundamental para a manobra, só guarnecido por "bazarucos[4]"!

– Fará como entender. O problema é seu. A partir de amanhã teremos à nossa disposição, um avião DO-27 para o posto de comando. No dia D, ao amanhecer, quatro jactos farão um bombardeamento de ataque ao solo. Depois, como você já deve estar perto, fará imediatamente a exploração do sucesso. Pode até orientar e pedir o apoio de fogo que quiser. Os jactos são comandados pelo seu amigo major Brito. Acredite: vai ser um sucesso para si e para o Batalhão. Imagine a cara dos "ares condicionados" do Quartel-General em Luanda, quando souberem que nós, somente com o Batalhão, fomos capazes de tomar o grande quartel N'Galama Piri ao MPLA!

– Veremos depois. O terreno é muitíssimo acidentado e a vegetação não pode ser mais densa; nem se conseguem ver os aviões. As transmissões são outro problema. Nesta época de cacimbo tenho sérias dúvidas de que os jactos tenham tecto[5] logo de madrugada.

– Aqui tem o seu exemplar da ordem de operações. Não se esqueça de contactar o Migalhinhas por causa da sintonia de todos os rádios.

– Muito bem. Por quantos dias vai durar a operação?

– Estimamos quatro ou cinco dias, incluindo as marchas de ida e volta.

– Isso é que é optimismo! Na melhor das hipóteses regressaremos na véspera do Natal. Se houver um “atascanso” na picada ou coisa do género, arriscamo-nos a passar a consoada a ração de combate e o Natal aos tiros!

– Olhe, meu caro, isto é uma guerra. Não é uma colónia de férias. Tudo o que necessita saber está na ordem de operações. Resta perguntar ao Comandante se lhe quer dizer alguma coisa.

Dizendo isto, atravessou a sala, desviou a cortina, e entrou na pequena dependência, que servia de gabinete do coronel.

– Dá licença, meu comandante? Está aqui o comandante da Charlie. Recebeu já a ordem de operações para a operação "Alta Escola”.

O comandante assomou à porta.

– Boa tarde, capitão. Parece que o oficial de operações já lhe explicou tudo. Se tiver algum problema de logística, fale com o nosso major. Recomendo-lhe pontualidade na saída. Detesto atrasos.

– Farei por que haja pontualidade.

– Dá licença, meu comandante?

O padre capelão, sem esperar resposta, ia entrando. Esfregando as mãos, aproximou-se da mesa do Comandante.

– Há novidade, capelão?

– Disseram-me que vai haver uma operação muito grande, e vinha lembrar, que temos preparada a festa do Natal... se vão todos os homens que temos estado a ensaiar, não sei como irá ser...

Uma vez mais, os altos segredos da guerra tinham falhado. Lá fora já toda a gente sabia! O tenente capelão continuou:

– Se os rapazes da orquestra e os que têm estado a ensaiar não forem dispensados, julgo que não vai haver festa de Natal.

– Capelão, quem lhe disse que iria haver uma grande operação?

– Ai, meu capitão, toda a gente o sabe! A mim disse-mo o sacristão, por o ter ouvido a outros soldados na loja do Russo. Agora veja, quando aquele pateta o sabe... isto no fundo é uma grande família, meu comandante!

O capitão de operações reagiu:

– Assim não pode ser. Há aqui uma fuga de informação impressionante. Os nossos planos, a estas horas, já devem ser do conhecimento dos “turras”, com tantos assalariados que tem o civil! Isto assim não pode ser!

– É efectivamente uma grande maçada esta fuga do segredo!

Disse o comandante, sempre imperturbável; voltando-se para o capelão, acrescentou:

– Capelão, haverá festa de Natal e operações; não se preocupe! Mais alguma coisa?

nota: ESTA SÉRIE DE ARTIGOS TEM UM FUNDO MUITO REAL. FOI RETIRADA DO LIVRO DE BERNARDINO LOURO, "ESCRITAS NA AREIA" a publicar no próximo ano.

(cont)

Fotografia de " OsLuenas@groups.msn.com"

[1] Um grupo de combate tinha cerca de trinta homens
[2] Relatório periódico de informações operacionais
[3] Substituição de combatentes
[4] Novatos
[5] Altura para operação das aeronaves

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