segunda-feira, 10 de maio de 2010

Natal em tempo de GUERRA


A chuva sempre forte continua a fustigar. Tamborila a chapa canelada de zinco a cobrir o posto de sentinela, alcandorado no centenário embondeiro. O motor do gerador da luz continua a roncar. Sempre forte e monótono. A alvorada ténue faz distinguir já a silhueta dos edifícios das casernas.

De repente, amanhece em África!

Bebemos uns copos, – largos! – como é costume nas vésperas das grandes operações. Avançaram até as reservas: – as garrafas de whisky que cada um tinha escondido nos seus quartos.

O tenente-capelão dava o gelo e a bênção para cada rodada.

Eram dez horas quando, meio tonto, entrei naquilo a que me tinha acostumado a chamar de meu quarto. O capitão da CCS roncava, como era costume. Às escuras deitei-me.

Penso que dormi umas duas horas.

Acordei com um terrível pesadelo. A chuva grossa cai desamparada sobre as folhas de zinco do barracão. De repente, parou. A cama foi ficando cada vez mais pequena. Os roncos do gordo capitão são cada vez maiores. O silêncio da África é absoluto. O calor é húmido e peganhento. A insónia, clara e deprimente. Como seriam os próximos dias?

Só Deus poderia saber. Esse Deus que há anos ignorara estava agora ali bem perto e eu quedava-me mudo, sem coragem para lhe falar e muito menos, pedir o que quer que fosse. Pareceria mal só me lembrar Dele quando me sentia à rasca!

O suor ficou gelado. Tenho frio em África!

Mas os soldados, os meninos grandes que eu desmamara? E as famílias que tínhamos deixado? E a Pátria que havia que defender? E a incerteza da batalha que teríamos todos de afrontar? Pelo menos para esses, Misericórdia Senhor!

E se eu morrer? É sempre trágico morrer-se aos vinte e seis anos!

Que frase mais idiota! Mas, vendo bem, pouca falta faria. O meu pai tomaria conta do rapaz e ela, nova e bonita, seguiria o seu caminho. Havia choros, recordações e a certeza de que teria morrido com dignidade. Ao menos isso! Fora esta a vida que escolhera. Eram estes os frutos que ela dava. Tudo menos ter ou revelar que, no fundo, o que tinha era medo. Só os perus morrem de véspera! Mas seria mesmo assim? E o malvado sono que não chega. A merda da cama está toda encharcada de suor.

Tenho medo. Levanto-me. Tenho de arrumar as minhas coisas. Se, por acaso... há que deixar tudo mais ou menos arrumado.

O gordo ressona e peida-se. Nunca fez cerimónia! É assim na caserna, – disse. De noite dorme com um pijama riscado, que julgo nunca ter sido lavado. De manhã veste a camisola interior, cavada e sem alças, que diz ser muito boa para prevenir constipações.

Parece que voltei às camaratas do colégio. Mas este nunca poderia ter lá andado. É velho demais. Sobretudo na alma. Não há dúvida: – podia ser meu pai! Rebola-se, ronca e sonha, e, amanhã, dirá que não conseguiu dormir e continuará a chatear-me porque as rações de combate não estão certas, e eu terei de pagar as que faltam no depósito do reabastecimento da sua, – dele – CCS. Ele pensa ser o dono da guerra. Se calhar, é mesmo! Pelo menos é o dono das rações de combate. Bem pode o Valente dizer-lhe que vem na ordem de operações, mas dali, do seu depósito de víveres, não sai nada sem requisição. Está dito e bonda!

Põe na tal requisição a soberana assinatura ou um estranho gatafunho como visto, e aponta, sempre com um lápis, – tirado da orelha, – no caderninho que trás no bolso da perna das ensebadas calças de serviço.

Já arrumei tudo. Afinal é muito menos do que pensava. Só falta atar o cordel nas malas, para depois lhe porem o lacre. Meses depois as embambas[1] chegarão ao meu pai, como está escrito nos papéis confidenciais da guerra que todos nós assinamos, por se acaso...

De repente, amanhece em África!

O motor da luz parou.

JS
(cont)

Fotografia de " OsLuenas@groups.msn.com"

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