Na região dos Dembos a noite corre pesada. Choveu toda a noite; uma chuva contínua e grossa. A atmosfera está carregada de electricidade. A chuva tamborila nas latas onduladas que cobrem as casernas dos soldados e os outros edifícios.
Durante a noite, as sentinelas foram-se rendendo entre si, pelo simples processo de se despertarem uns aos outros. Sonolentos, num gesto automático e rotineiro, pegavam maquinalmente, na espingarda automática, que estava dependurada ao fundo da cama, e andando e bocejando, seguiam para o posto de sentinela.
À porta da caserna, a chuva torrencial batia-lhes no rosto. Só então acordavam. Voltavam atrás. Calçavam as botas, apertavam os atacadores, vestiam às avessas o poncho impermeável, com a parte de borracha para fora – só assim aquilo abrigava da chuva! – protegiam carinhosamente a arma e corriam para o embondeiro. Ai estava montado o posto de sentinela.
Um outro, que procedera de maneira idêntica, vinha completar o posto de sentinelas dobradas.
– Éh pá, chove como merda!
– Esta hora é a que mais me custa fazer. Estava a sonhar com umas gajas bestiais, quando aquele sacana do Gordinho me foi chamar!
– Óh Guerreiro, deixa-te de galgas. Não me adormeças com histórias! Hoje, em véspera de operação, estavas mas é a cagar-te com medo de o capitão te engatar. Que porra de guerreiro és tu?
– Não me "chates ", nem te ponhas para aí com bocas. Eu não tenho medo de nada. Se o capitão me não mandar p'rà guerra, é porque sabe que me dão ataques e vejo muito mal. Ele também precisa de um tipo de confiança, como eu, para tomar conta da caserna, enquanto vocês estão lá fora.
– Tu és é um "arame-farpado"!
Apalpando com os dedos a arma do camarada, continuou, com o seu sotaque arrastado de madeirense
– Olha pá… tens a bala na câmara?
– Atão nã havia de ter?
– Deixa lá ver mas é essa merda. – Sem que o outro opusesse qualquer resistência, tirou-lhe a arma da mão, sacou o carregador e, puxando a culatra atrás, fez saltar o cartucho da câmara, acrescentando: – Pega lá, não me fodas; mete o carregador no bolso. Segura bem essa porra da espingarda e aponta isso bem p'ra lá, pois o Diabo disparou uma tranca. Tu és muito nervoso e isso contagia a arma!
Acendeu um cigarro e, imediatamente, ocultou-o na mão.
– Não fumes, pá. Vem aí o sargento da ronda e dá uma bronca, a ti e a mim.
– Deixa lá. Quando eu o sentir apago a beata.
– Bem, afinal contas, ou não, esse sonho das gajas?
– Óh Madeira, tu és um gajo porreiro! Há aí uns sacanas com quem é impossível fazer guarda. Passam o tempo a implicar comigo, oferecem-me porrada e chateiam-me os cornos, porque eu gosto dos doces das rações de combate! Tu, lá na caixa, não tens lá uns docitos que me queiras dar?
– Já mo podias ter dito há mais tempo. Tenho lá uma quantidade enorme dessa merda, que deito fora.
– Para mim são muito bons!
– Não há dúvida. És um verdadeiro "arame farpado"! Se andasses na mata, nem os querias ver. Qualquer dia o capitão empurra-te para um desses PI's, onde se está parado uma semana… e então é que te vais fartar dos doces das rações! Olha que o gajo tem a mania de dizer que a guerra é para ser feita por toda a malta.
– Se ele me quiser mandar, eu alinho.
– Que remédio tens tu, pá!
– Amanhã, quer dizer, daqui por um bocado, tu alinhas p'rà operação, não é, Madeira?
Estendeu-lhe o maço de cigarros.
– Não obrigado. A mim, pá, só me saem duques! Ainda não falhei nenhuma. O capitão fode-me sempre! Como vai à bola comigo... – e imitando o falar do capitão – sô Madeira para aqui, sô Madeira para ali... – e o pobre do Madeira é quem se trama!
– Mas tu já foste louvado e vais ter o prémio Governador-Geral!
– Parece que sim. Noutro dia até mandei a folha da ordem de serviço p´rà minha, numa carta que me escreveu o Saraiva, o escriturário.
– Quantos anos tens, pá?
– Vinte e seis. Sou da idade do capitão. Quando estive no quartel de S. Martinho lá do Funchal desenfiei-me muitas vezes... e os cabrões ferravam comigo na “casa da rata”[1]. Como eu já era casado, uma vez pedi para me deixarem ir a casa, pois já não havia que comer. Pedi ao sorja[2] da Companhia, que me arranjasse uns dias de licença. O filho da puta não me desenrascou, e eu... pus-me ao caminho e marchei p´ra casa. Tinha lá muito que fazer! A minha, tinha tido naqueles dias um rapaz, que a ia matando. Os dias foram-se passando até que uma bela manhã os “cabeças de giz” da Polícia Militar foram-me lá buscar num jeep. Azar...
– E de tropa?
– Olha, já nem sei bem... talvez uns cinco, eu sei lá... e ainda tenho de terminar esta comissão! Vim por ser “correccional”. Mandaram-me escolher entre o barril do Forte de Elvas e isto aqui! Pelo menos foi isso que me disse o primeiro que me mobilizou. Agora que já cá estou, até nem me importo muito. Ando a pensar em por aqui ficar no final da tropa. Mando vir a patroa e os putos, e toca a viver aqui! Sempre é bem melhor do que lá na Madeira!
– Mas tu bebes demais, óh Madeira!
– Na nossa terra, a gente começa a tomar bebedeiras muito cedo. Era ainda um fedelho quando o meu pai me dava a provar da rija, a aguardente de cana lá da Madeira, sempre que a minha mãe m´o mandava chamar à venda, lá no Porto Moniz. Ai que saudades tenho da nossa aguardente de cana!
– Eu só posso beber coca-cola.... como me dão ataques ....
– Grande merda! Lá no Porto Moniz, há uma mulherzinha a quem davam também ataques... sabes que horas já são, Guerreiro?
– Devem estar a dar as cinco. Temos que “dominar esta pantera”[3] até que seja dia e nos venham render os gajos da ´CCS[4]. Já não deve faltar muito!
– E isso a ti que diferença faz? Nós vamos embora e tu vais para a caserna e metes os cornos na palha todo o dia.
– Isso é que era bom! Sempre que vocês vão p´rà mata, vou adir à CCS. O capitão é um “lateiro”, filho da puta. Passa o tempo a marrar comigo só porque sou um operacional. Depois vem o chato do major a engatar gajos p´ra irem trabalhar nas obras do poço que ele quer abrir ali na horta. O gajo é uma chaga que nem tu imaginas! Noutro dia, estava eu fechado na caserna a escrever um "bate-estradas"[5] a umas tipas que engatei nos anúncios do Notícias de Angola, – umas gajas que adoram ser madrinhas de guerra da malta –, quando o sacana, que anda sempre a meter o nariz em tudo quanto é canto, desatou às porradas à porta. Fez-me explicar mais de cem vezes, o que estava eu ali a fazer. Chateou-me a porca e, no fim, disse que me dava um grande “porradão”[6] se me voltava a encontrar ali desenfiado. E vê lá tu, pregou comigo, eu, um doente, a cavar e a tirar terra, toda a semana, nesse maldito poço. Fartei-me de lhe dizer que me davam ataques, mas o sacana cagou-se no assunto e não fez caso. Uma semana no poço! Filho da puta!
– Olha que sempre é bem melhor trabalhar no poço do que andar na mata. No poço sempre se pode fazer sorna!
– Óh Madeira, vocês hoje vão p´rà Maria Fernanda[7], não é verdade? Ouvi-o dizer ontem na tasca do civil. Aquilo é bem fodido!
– A mata é muito fechada e lá os “turras” têm força como o caralho!
– Éh pá... se te queres dormir um bocado encosta-te ali p´ra trás. Ai não chove. Se aparecer o sargento eu chamo-te, e não há problema.
– Tu deves estar é maluco! Assim que eu me dormisse, tu já estavas a ressonar. Depois estávamos os dois bem fodidos quando o furriel nos agarrasse a sonhar!
– Gramava que tu descansasses! Hoje tens de ir p´rà mata e ainda mais com a puta da MG às costas... deve ser pesada como um raio!
– P´ra mim dá igual. Começa mas é a contar lá essa merda do sonho!
– Foi um sonho bestial! Sonhei que estava na cama com cinco gajas muito boas... umas tipas “boazonas” lá na minha terra...
JS
(cont.)
Fotografia de " OsLuenas@groups.msn.com"
[1] Prisão
[2] Sargento
[3][3] Estar de sentinela
[4] Companhia de Comando e Serviços
[5] Aerograma
[6] Punição
[7] Fazenda de café nos Dembos e na margem direita do rio Dange
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