pedaços de tripas, aos farrapos, estão espalhados pelas árvores.
No chão, quatro soldados parecem mortos. Não se mexem. Deitam sangue pela boca. Ainda respiram e gemem.
O capitão ajudado pelo Zé Inácio e o Constantino, arrastam os corpos para detrás das árvores, para os abrigarem do fogo, que continua.
A batalha tem gritos de raiva dos vivos, gemidos dos feridos, e muitas ordens gritadas.
A floresta virou talho. O enfermeiro não sabe a quem acudir. O capitão ajuda o enfermeiro. Com um pouco de algodão limpa o sangue que em golfadas, corre da boca de um dos soldados.
– Ai, meu capitão, que eu morro...
– Calma, pá. Isto vai-se resolver! Zé, vai dizer ao furriel que peça imediatamente evacuação heli para cinco ou seis feridos muito graves.
O tiroteio não abranda. As árvores vomitam metralha.
– Mê capitão, o furriel não consegue entrar em ligação. Diz que a mata é muito densa. Lá atrás, o nosso alferes Hélder está também cercado de “turras”. Não o deixam passar para o morro.
– Corre lá Zé. Ele não se pode deixar isolar. Senão, nunca mais saímos daqui.
– Mê capitão, aqueles bocados de carne... nas árvores, … são do Silva?
O capitão limpa o sangue da cara de um homem arrastado para fora da zona de morte. Está lívido. As árvores entram, de repente, a rodar no carrossel gigante.
Sim é verdade.
Os pedaços de carne pendurados naquele açougue, eram tudo o que restava, do que em vida, fora soldado, se chamara Silva, fora algarvio e, momentos antes estivera a seu lado, respirando o mesmo ar.
O turbilhão gira e confunde.
Tudo é real e não tem nexo.
A realidade e o pesadelo são coincidentes.
– Mê capitão, o furriel já entrou em ligação...
– Diz-lhe que peça apoio aéreo... ao menos com foguetes... e insista nas evacuações.
– Ai, meu capitão, que eu morro...
– Calma... calma... isto vai. Onde te dói?
– Todo o corpo... mas, mais no peito... não consigo respirar...
– Já está, mê capitão.
– Zé, vai ver o que se passa com o nosso alferes. Vê se já está no morro. – dirigindo-se ao soldado atirador que estava mais perto – Éh pá ... éh pá ... passa-palavra "alto ao fogo".
O soldado gritou para o outro que lhe estava próximo:
– Alto ao fogo... Alto ao fogo…
Foram minutos eternos para haver silêncio.
Os gritos de dor dos feridos, balbuciados entre dentes, pareciam estar a ser transmitidos através de uma amplificação sonora.
– Ferimos uns gajos e, no local dos rastos do sangue, encontrámos estas munições de Kalash. Os “turras” iam-nos cercando. Eram mais de cinquenta a fazer fogo à ganância. Tenho o morro controlado com três equipas – disse o Hélder com a respiração ofegante e o suor a correr pelo rosto sombreado por uma barba de três dias.
– Bem... precisamos de transportar os feridos até lá atrás. Zé, dá aí uma ajuda... pega com jeito... para não fazer doer...
– Ai... meu capitão... eu vou morrer... eu vou morrer…
– Pastilhas, dá morfina a todos os feridos, senão isto nunca mais anda. Éh pá... passa palavra… para o Marinho vir cá.
Chegou o alferes.
– Meu capitão, o Quirino salvou a malta. Assim que o Silva bateu no cordão de tropeçar, rebentou a mina. Tinha amarrada uma bomba de avião de cinquenta quilos. O Silva ficou desfeito. Os gajos estavam emboscados do lado da equipa do Quirino. Começaram a fazer tiro de rajada, a varrer. Quirino, arrastou a equipa, saltou para cima deles e atacou com granadas e fogo. Se o gajo não tivesse feito aquilo... os “turras” tinham vindo agarra-los à mão. O Madeira foi também bestial; pôs a metralhadora a cantar, e, de joelhos, obrigou os tipos a enterrar os cornos no chão!
– Está bem. Confira rapidamente o seu grupo. Veja se falta alguém ou se desapareceu algum armamento. Diga ao Hélder para fazer o mesmo.
– Como estão os feridos?
– Não sei exactamente. Parece que bastante mal. Não sei se foi do sopro da explosão, se...
A frase é interrompida. Muitos tiros e explosões de granadas. Os dois oficiais, como que sacudidos por uma mola, rastejam, saltam como coelhos e fazem fogo para a direcção onde estava o inimigo.
Os arbustos, junto ao corpo do ferido, tinham sido decepados, instantaneamente, por uma tesoura invisível.
Eles voltavam à carga.
– Marinho, temos de atirar a sua tropa para cima destes filhos da puta... senão, isto nunca mais pára. Os cabrões podem estar a armar-nos alguma ratoeira – e gritando: – Façam fogo… mas só pela certa.
Duraram alguns minutos. A manobra do grupo foi efectuada. Os guerrilheiros, mal deram conta, retiraram. As suas fardas negras eram vistas de relance. O estalar dos ramos a partirem-se e o característico som das suas automáticas, anunciavam os que ainda combatiam. Cobriam a retirada dos seus companheiros. A simbiose entre eles e o terreno era perfeita. Quando estavam a retirar gritam:
– Vai p'ro Puto, tuga[1], filho da puta!
– Tuga... colonialistas... filhos da puta!
– Morte aos tugas salazaristas!
– Brancos cabrões. Fora dos nossa terra!
Os soldados não lhes ficavam atrás. A peixaria estava instalada!
Finalmente o tiroteio terminou.
– Mande apanhar os restos do Silva para um pano de tenda. Vamos recolher os feridos e preparar as evacuações. Veja se falta a arma de algum ferido – disse o capitão.
– Não falta. Estão todas. A do Silva ficou destruída, mas há ali umas peças retorcidas. As outras estão todas.
– Quantas são as baixas, exactamente?
– Estão a atacar a Alfa. Já têm dois mortos, e não consegui entender o número de feridos. Estão a pedir também evacuação, via rádio – disse o Alves Pereira afogueado.
– Isto não há dúvida que promete! A procissão ainda está só no adro. Vai ser um arraial dos antigos!
– Os hélis devem estar quase a chegar. Ouvi na rádio eles a pedirem a Luanda-Rádio, um avião de transporte de feridos para a Fazenda Margarido. Vão fazer as evacuações desta zona para a Fazenda.
– Temos de pôr isto imediatamente a andar. Comecem a remover os feridos. Você, Alves Pereira, continue em escuta.
– Meu capitão, o alferes Hélder já tem o morro tomado. Mas, daqui até lá, ainda é mais de um quilómetro.
– Meu capitão, do que restou do Silva, somente temos ali a cabeça com um bocado do peito, e um pé dentro de uma bota – disse o cabo enfermeiro.
– Pois é isso que se recolhe.
– Foi o que nós fizemos.
– E onde está?
– Naquele pano de tenda que o Botelho traz na mão – respondeu o Constantino.
Um soldado cabe num pano de tenda. Um outro soldado leva-o na mão, agarrado pelas quatro pontas!
Era cerca de meio-dia, quando se terminaram as evacuações. Três helicópteros baixaram, recolheram os feridos, e levaram o pano de tenda.
Só ao fim da tarde apareceu de novo o DO 27. Comunicou que no dia seguinte seria transmitida a decisão do Comando.
Mas esta não veio. Nem de manhã nem de tarde. Não havia jactos. Não havia tecto.
[1] Português
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