sábado, 8 de maio de 2010

Natal em tempo de GUERRA

pedaços de tripas, aos farrapos, estão espalhados pelas árvores.

No chão, quatro soldados parecem mortos. Não se mexem. Deitam sangue pela boca. Ainda respiram e gemem.

O capitão ajudado pelo Zé Inácio e o Constantino, arrastam os corpos para detrás das árvores, para os abrigarem do fogo, que continua.

A batalha tem gritos de raiva dos vivos, gemidos dos feridos, e muitas ordens gritadas.

A floresta virou talho. O enfermeiro não sabe a quem acudir. O capitão ajuda o enfermeiro. Com um pouco de algodão limpa o sangue que em golfadas, corre da boca de um dos soldados.

– Ai, meu capitão, que eu morro...

– Calma, pá. Isto vai-se resolver! Zé, vai dizer ao furriel que peça imediatamente evacuação heli para cinco ou seis feridos muito graves.

O tiroteio não abranda. As árvores vomitam metralha.

– Mê capitão, o furriel não consegue entrar em ligação. Diz que a mata é muito densa. Lá atrás, o nosso alferes Hélder está também cercado de “turras”. Não o deixam passar para o morro.

– Corre lá Zé. Ele não se pode deixar isolar. Senão, nunca mais saímos daqui.

– Mê capitão, aqueles bocados de carne... nas árvores, … são do Silva?

O capitão limpa o sangue da cara de um homem arrastado para fora da zona de morte. Está lívido. As árvores entram, de repente, a rodar no carrossel gigante.

Sim é verdade.

Os pedaços de carne pendurados naquele açougue, eram tudo o que restava, do que em vida, fora soldado, se chamara Silva, fora algarvio e, momentos antes estivera a seu lado, respirando o mesmo ar.

O turbilhão gira e confunde.

Tudo é real e não tem nexo.

A realidade e o pesadelo são coincidentes.

– Mê capitão, o furriel já entrou em ligação...

– Diz-lhe que peça apoio aéreo... ao menos com foguetes... e insista nas evacuações.

– Ai, meu capitão, que eu morro...

– Calma... calma... isto vai. Onde te dói?

– Todo o corpo... mas, mais no peito... não consigo respirar...

– Já está, mê capitão.

– Zé, vai ver o que se passa com o nosso alferes. Vê se já está no morro. – dirigindo-se ao soldado atirador que estava mais perto – Éh pá ... éh pá ... passa-palavra "alto ao fogo".

O soldado gritou para o outro que lhe estava próximo:

– Alto ao fogo... Alto ao fogo…

Foram minutos eternos para haver silêncio.

Os gritos de dor dos feridos, balbuciados entre dentes, pareciam estar a ser transmitidos através de uma amplificação sonora.

– Ferimos uns gajos e, no local dos rastos do sangue, encontrámos estas munições de Kalash. Os “turras” iam-nos cercando. Eram mais de cinquenta a fazer fogo à ganância. Tenho o morro controlado com três equipas – disse o Hélder com a respiração ofegante e o suor a correr pelo rosto sombreado por uma barba de três dias.

– Bem... precisamos de transportar os feridos até lá atrás. Zé, dá aí uma ajuda... pega com jeito... para não fazer doer...

– Ai... meu capitão... eu vou morrer... eu vou morrer…

– Pastilhas, dá morfina a todos os feridos, senão isto nunca mais anda. Éh pá... passa palavra… para o Marinho vir cá.

Chegou o alferes.

– Meu capitão, o Quirino salvou a malta. Assim que o Silva bateu no cordão de tropeçar, rebentou a mina. Tinha amarrada uma bomba de avião de cinquenta quilos. O Silva ficou desfeito. Os gajos estavam emboscados do lado da equipa do Quirino. Começaram a fazer tiro de rajada, a varrer. Quirino, arrastou a equipa, saltou para cima deles e atacou com granadas e fogo. Se o gajo não tivesse feito aquilo... os “turras” tinham vindo agarra-los à mão. O Madeira foi também bestial; pôs a metralhadora a cantar, e, de joelhos, obrigou os tipos a enterrar os cornos no chão!

– Está bem. Confira rapidamente o seu grupo. Veja se falta alguém ou se desapareceu algum armamento. Diga ao Hélder para fazer o mesmo.

– Como estão os feridos?

– Não sei exactamente. Parece que bastante mal. Não sei se foi do sopro da explosão, se...

A frase é interrompida. Muitos tiros e explosões de granadas. Os dois oficiais, como que sacudidos por uma mola, rastejam, saltam como coelhos e fazem fogo para a direcção onde estava o inimigo.

Os arbustos, junto ao corpo do ferido, tinham sido decepados, instantaneamente, por uma tesoura invisível.

Eles voltavam à carga.

– Marinho, temos de atirar a sua tropa para cima destes filhos da puta... senão, isto nunca mais pára. Os cabrões podem estar a armar-nos alguma ratoeira – e gritando: – Façam fogo… mas só pela certa.

Duraram alguns minutos. A manobra do grupo foi efectuada. Os guerrilheiros, mal deram conta, retiraram. As suas fardas negras eram vistas de relance. O estalar dos ramos a partirem-se e o característico som das suas automáticas, anunciavam os que ainda combatiam. Cobriam a retirada dos seus companheiros. A simbiose entre eles e o terreno era perfeita. Quando estavam a retirar gritam:

– Vai p'ro Puto, tuga[1], filho da puta!

– Tuga... colonialistas... filhos da puta!

– Morte aos tugas salazaristas!

– Brancos cabrões. Fora dos nossa terra!

Os soldados não lhes ficavam atrás. A peixaria estava instalada!

Finalmente o tiroteio terminou.

– Mande apanhar os restos do Silva para um pano de tenda. Vamos recolher os feridos e preparar as evacuações. Veja se falta a arma de algum ferido – disse o capitão.

– Não falta. Estão todas. A do Silva ficou destruída, mas há ali umas peças retorcidas. As outras estão todas.

– Quantas são as baixas, exactamente?

– Estão a atacar a Alfa. Já têm dois mortos, e não consegui entender o número de feridos. Estão a pedir também evacuação, via rádio – disse o Alves Pereira afogueado.

– Isto não há dúvida que promete! A procissão ainda está só no adro. Vai ser um arraial dos antigos!

– Os hélis devem estar quase a chegar. Ouvi na rádio eles a pedirem a Luanda-Rádio, um avião de transporte de feridos para a Fazenda Margarido. Vão fazer as evacuações desta zona para a Fazenda.

– Temos de pôr isto imediatamente a andar. Comecem a remover os feridos. Você, Alves Pereira, continue em escuta.

– Meu capitão, o alferes Hélder já tem o morro tomado. Mas, daqui até lá, ainda é mais de um quilómetro.

– Meu capitão, do que restou do Silva, somente temos ali a cabeça com um bocado do peito, e um pé dentro de uma bota – disse o cabo enfermeiro.

– Pois é isso que se recolhe.

– Foi o que nós fizemos.

– E onde está?

– Naquele pano de tenda que o Botelho traz na mão – respondeu o Constantino.

Um soldado cabe num pano de tenda. Um outro soldado leva-o na mão, agarrado pelas quatro pontas!

Era cerca de meio-dia, quando se terminaram as evacuações. Três helicópteros baixaram, recolheram os feridos, e levaram o pano de tenda.

Só ao fim da tarde apareceu de novo o DO 27. Comunicou que no dia seguinte seria transmitida a decisão do Comando.

Mas esta não veio. Nem de manhã nem de tarde. Não havia jactos. Não havia tecto.

[1] Português

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