sábado, 8 de maio de 2010

Natal em tempo de GUERRA

Eram já cinco horas, quando apareceu o avião.

A tropa detestava a presença destes aparelhos. Davam a conhecer ao inimigo a posição. Também porque traziam, quase sempre, presságios de má sorte. Mas nem tudo eram desvantagens. Se não fossem estas gloriosas máquinas voadoras, nunca certos comandantes haviam de ver, ao menos de longe, os sítios da guerra!

– Cobra, aqui Pardal. Leve-me à sua vertical.

Era sempre a mesma cegada. Até que não se indicasse claramente onde se estava, não ficavam satisfeitos. O capitão franziu o sobrolho e lá foi dando as indicações.

– Ok Cobra, vi perf

eitamente a sua posição. É fundamental para a festa de amanhã. Se não tem nada, Bravo Tango e terminado.

O avião afastou-se, deixando de se ouvir em poucos segundos.

A mata tropical voltou ao silêncio. Daqui até ao anoitecer, tudo seria paz na terra da guerra. Os raios de sol caminham para o rápido ocaso, violento, como a terra que iluminam, escoando-se entre o arvoredo.

O capitão sentou-se no toro de uma das muitas árvores seculares, e estendeu a carta da região no solo. Orientou a carta pela bússola e tomou notas. Com o cansaço bem estampado no rosto, limpou o suor que lhe corria com o "quico", abriu o bornal da cintura e tirou a eterna ração de combate. Como um autómato, comeu uma lata de sardinhas com um bocado de pão duro. Quando terminou, limpou a boca às costas da mão e bebeu dois golos de água morna do cantil.

Fora mais um piquenique na guerra!

Não tardou em anoitecer. Os homens descansavam e dormiram, enrolados nos panos de tenda e nos ponchos, e dormiram de um sono só. Tinham andado a pé mais de nove horas.

O inimigo não dava sinais de vida.

Choveu copiosamente durante toda a noite. Quando nasceu o sol parou de chover. O ar de neblina e a humidade, trazia o característico cheiro da mata. A atmosfera urdira nevoeiro ténue, teia quase irreal de homens, árvores, armas e raios de sol, como focos de um enorme palco.

Antes das dez horas, começou o esperado e desesperado dia D, com o avião a sobrevoar a posição.

– Cobra, aqui Pardal. Informo não ser possível efectuar o bombardeamento, porque antes do meio-dia não há tecto para os falcões[1]. Não podemos atrasar. Desencadeie, imediatamente, o golpe de mão. O objectivo principal está no morro, azimute 82. Desça a encosta onde se encontra até encontrar um pequeno riacho. No outro lado e a cerca de cem metros do rio, começa o objectivo. As cubatas estão dispersas debaixo das árvores. O trilho leva ao objectivo. Diga se entendeu correcto. Escuto.

– Ok, Pardal, entendido. Rogo informe se Marte ou Neptuno[2] se encontram nesse. Escuto.

– Afirmativo. É Neptuno que está transmitindo. Escuto.

– Ok, Pardal. Diga-me qual a posição de Trovão[3] e onde posso encontrar uma clareira para fazer fogo de morteiro. Escuto.

– Trovão encontra-se junto à ponte do Totobola, na picada nova, quadrado noventa do transparente de operações. Por aqui não há clareiras para utilizar o morteiro. Tem um morro de capim, azimute 220, mais ou menos mil metros, mas não o pode utilizar. Iria atrasar a operação. Escuto.

O capitão limpou um suor frio da testa com o "quico ". Sem qualquer apoio de fogo e sem qualquer hipótese de surpresa, teria de atacar o mais forte reduto inimigo. Era impossível que não tivessem sido já detectados. O tão almejado golpe de mão, iria certamente, transformar-se numa ratoeira. Num banho de sangue!

– Cobra, aqui Pardal. Inicie imediatamente a marcha.

– Ok, Pardal. Neptuno, isto não me cheira nada bem. Escuto.

– Spartacus, aqui Neptuno. Deixe-se de considerações e cumpra a ordem. Para trás mija a burra. Boa sorte e Victor Charlie[4].

– Obrigado, Victor Charlie.

As ordens foram transmitidas aos grupos de combate, e destes às equipas de combate.

Os soldados sabiam exactamente a quem competia ir à frente, dentro de cada grupo e dentro de cada equipa, qual era agora o primeiro.

Em combate os gestos e os actos são mecânicos e automáticos. Nunca há voluntários. Simplesmente há destino. Cada um tem o seu.

O estacionamento foi levantado e as latas das rações enterradas e disfarçadas para não poderem vir a ser utilizadas para armadilhas.

Junto do capitão veio o soldado a quem competia agora, ir à frente, receber as ordens. Era natural do Algarve. Forte e entroncado, contrasta no seu aspecto rude, a cara de menino loiro. No jeito cantado dos algarvios, interpelou:

– Meu capitão, posso fazer fogo de reconhecimento?

– Olha Silva, o fogo de reconhecimento só faz bem aos nervos. Se puderes evitar de o fazer, muito bem, se não... – voltando-se para o outro soldado que ali estava, continuou:

– Quirino, metes a tua equipa em linha, dentro da mata. Evita o trilho. Ouviste bem?

– Sim, meu capitão.

– Os comandantes dos grupos de combate e os comandantes das secções verificam o equipamento, e se todos têm as armas prontas a fazer fogo. O Madeira vai com a MG na terceira equipa. Só faz fogo para o lado direito. Deve ser desse lado que devem vir as emboscadas. No rio, quase seco, a progressão é feita por lanços. Somente depois de termos ocupado a outra margem é que se inicia a travessia. Uma equipa de cada vez. Você, Hélder, aguente deste lado, com três equipas. Tem de assegurar uma eventual retirada. Veja se não há fogo cruzado. O morteiro, a bazuca e a outra metralhadora MG ficam na minha equipa. Só fazem fogo à ordem. A bazuca emprestada pela CCS vai com o Marinho. Alguém quer fazer alguma pergunta?

Não houve resposta.

O perigo estava estampado em todos os rostos.

O capitão continuou:

– A maior atenção aos sinais de combate. Muita sorte para todos. Silva, está a andar...

O Zé Inácio bate nas costas do capitão, dizendo:

– Mê capitão, o “turra” está a dizer que aqui todos os trilhos estão armadilhados. O gajo devia ir em primeiro lugar, de "arrebenta" minas, nã é mê capitão?

– Olha, Zé aqui já não há perigo de nos perdermos. Não ouviste de madrugada o cantar dos galos?

– Ouvi, si senhor. Os filhos de uma magana devem estar aqui bem perto.

– Mais perto do que tu imaginas, Zé.

JS

(cont.)

[1] Aviões a jacto de ataque ao solo
[2] Códigos para o comandante e oficial de operações
[3] Código da companhia que ia no outro eixo em sobrapoio
[4] Viva a Cavalaria

Sem comentários:

Enviar um comentário